Saturday, May 03, 2008

O meu bairro

Merda. Andando pelo bairro... e o que vejo? É o meu bairro, sim. Merda, mas meu.

Avanço por um caminho que conheço bem, não conheço eu outra coisa. Sentado na esquina alguém partilha as lágrimas com o mundo (ou com o que pensa que ele é).Dou conta de que esse alguém sou eu, a remexer em medos antigos. Quem não os tem?Foi difícil para mim o ano passado, parece que fui marcada pela morte (ou para a morte, ou por ela).O coração bate mais rápido e torna-se a causa do meu cansaço. A vida cansa-me e nenhum descanso muda isso. Os meus olhos insistem em permanecer molhados por todos os amigos que estão lá em baixo. Que ficaram por lá. Merda, é assustador. Violência gera violência e todos os dias penso que é desnecessária e todos os dias fico mais preocupada. Lágrimas. As leis são drásticas e a morte é certa para nós, do bairro. A maioria tem a prisão como segunda casa. Esta vida não é para mim, prefiro morrer desde que não me chorem. Às vezes pergunto-me se Deus ainda se importa connosco. Quem quer saber se sobrevivemos? Só falam de alguém como nós pelos piores motivos, normal. O meu bairro já não é o mesmo e os bebés berram adivinhando o sofrimento inerente a este jogo. E eu juro que não é fácil, mas não vou desistir. E tudo vai ficar melhor quando eu voltar. Preciso, para sempre, de amor e de mimos. Este é o meu bairro.

A vida não passa de um sonho, tudo o que aqui vemos são tempos difíceis, mas continuaremos a rezar.

O ambiente é sempre quente e pesado, o cheiro á pólvora é constante. É impossível explicar a dor destas mães. Temo as grades mas gosto de viver bem e isso implica riscos. Faço merda. É como viver num sistema suicida. Sempre noutra dimensão (os químicos têm esse efeito). Ajuda-me, estou farta. Sinto fome. Não consegui arranjar trabalho e, por isso, comecei a roubar a sério. A (minha) vida é difícil, não consigo dormir porque me pesa a consciência e volto a lembrar-me deles. Continuarei a pedir, até ao meu último dia, por um caminho melhor, mas não posso evitar sentir-me sem esperança e destroçada. Desde o ínicio que sinto o racismo na pele (ou na cor dela) e nunca pude apagar o que isso representa. Entro num bar, peço um copo, acendo um cigarro. Por segundos sinto-me a estrela. Mas o meu coração sente, em todos os sítios a que vou, que estou sozinha e que é só comigo que posso contar. Fecho os olhos e vejo a minha casa. No meu bairro.

Não posso evitar questionar-me porque morrem tantas crianças, isso é mesmo necessário? Quero desaparecer, mas orgulho e homicídio não coincidem. Todos choram por vidas perdidas. Ouço uma mãe gritar: "Vem para dentro". O bairro está cheio de perigos. Costumávamos ser uma comunidade no verdadeiro sentido da palavra, e agora não passamos de estranhos, o tempo mudou-nos e transformou-nos em pedras. Não consigo ter pena dos traficantes. A merda é real, sei como me sinto, sei da minha tragédia. Vejo uma mãe solteira com um filho problemático (do pai ninguém sabe), na rua, a fazer-se ao jogo, bêbeda, anseando que algum deles passe a noite com ela. É um mundo de homens e as fantasias dominam, mas os sonhos que vêm com os químicos conseguem dar cabo da noite. Fecho os olhos e adormeço. No meu bairro.

Uma jovem, que costumava estar connosco, aprendeu a vencer a noite. Vejo o álcool derrubar pessoas. Não o ouçam, se é que me faço entender. Crescer neste mundo onde tudo é escandaloso faz-me pensar em tempos e em crimes passados, tentava roubar comida e temia o inferno. Não consigo explicar o que me atrai para este jogo sujo... pulseiras de ouro, dinheiro extra e fama! E de repente todos sabem o meu nome, juro, todos me conhecem. O dinheiro mudou-me. Quero continuar assim, apesar da dor, por todos os que perdi neste jogo. No meu bairro.Descansem em paz. Todos. De todos os (meus) bairros. Cova da Moura, 6 de Maio, Estrela de África, Estrada Militar do Alto da Damaia... São todos meus, cá dentro.

O texto é pura ficção, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

1 comment:

Å®t Øf £övë said...

Life is not perfect.
Kisses.