Friday, September 01, 2006
Fim de Agosto
Uma pessoa na praia caminha até à água e prepara-se para dar o último mergulho do dia. Deixou o seu grupo no areal e foi sozinha. A temperatura do mar é moderada mas depois de uma tarde preguiçosa deixa a pele arrepiada e desperta quase instantaneamente. Não sabemos se esta pessoa é homem ou mulher, nem que idade tem, nem em que circunstâncias foi ali parar. Sabemos que isto aconteceu. A identificação da personagem - ela própria distraída de si mesma enaquanto caminha - não tem qualquer importância. Dirigiu-se para o mar por reacção à inactividade e é tudo.
Mergulhou uma única vez sob uma onda e ficou num estado mental lúcido incomum. Como lhe ocorrera poucas vezes na vida: uma vez em que saiu de casa numa seca manhã fria de Inverno sem chuva e em mais um par de ocasiões igualmente prosaicas, noites especialmente estreladas, chuvas novas baixando a poeira, o que quer que fosse. Nessas ocasiões não se dera nenhum acontecimento particular, nada de significativo girara nas rodas dentadas, e a sua chave máxima estava precisamente em nada ter ocorrido e não haver mistério algum para decifrar. Por isso, e tal como dessas vezes, teve a certeza de que não se esqueceria daquele momento.
A primeira coisa em que reparou depois de regressar à superfície foi na limpidez da falésia por detrás do areal. Era, como em muitas praias, uma breve escarpa de arenito ocre, com uma linha de arbustos no topo, e que descia em modulações intersectadas pela sombra, exactamente como os panejamentos nos mármores das estátuas clássicas, dramaticamente pregueados em excesso. Via a falésia, que se encontrava a uma distância razoável, com uma nitidez mais do que perfeita, como se tivesse sido míope toda a vida e agora, - sem óculos, sem lentes -, visse prodigiosamente definidos todos os objectos, e todos os objectos ganhassem uma sobstância, um recorte e um volume de que raramente se apercebera. Sabia, genericamente falando, as razões pelas quais aquilo se dera: era fim da tarde, e talvez fosse pelo ângulo dos raios solares, ou pela trajectória das ondas electromagnéticas e a sua refracção, que por sua vez talvez tivesse algo que ver com polarização ou um qualquer fenómeno de nome semelhante. Sabia dessas razões e elas passaram-lhe pela mente embora não se possa dizer que tivesse pensado nelas. Estavam algures num plano de fundo da mente, como tudo o resto. Continuava, por exemplo, ouvindo os banhistas nas imediações. Era um mês de férias, note-se, e as férias estavam a acabar-se. E tampouco estava deserta a praia; era uma praia cheia de gente, e as crianças esgotavam os derradeiros guinchos e gritos, exigiam a atenção umas das outras para as últimas acrobacias, eram chamadas pelos adultos pela vez definitiva.
E embora a pessoa no meio da água - mulher ou homem, pouco interessa - ouvisse tudo isso sem lhe escapar a mais ínfima minúcia, nada a distraía daquela falésia erguida entre a areia cheia de gente e o céu azul escuro. Grupos de gente abandonavam a praia carregando chapéus-de-sol, toalhas e animais domésticos para onde quer que estivessem alojados durante aquele mês. Alguns exercitavam-se a poucos metros de distância, corriam, faziam jogos. O seu próprio grupo estava quase em frente, um pouco mais afastados entre estes dois planos, e esperavam. Ela via-os, mas não os via.
Isto durou, ao contrário do que leva a contar, pouquíssimo tempo. E passado esse pouquíssimo tempo a nossa personagem teve o seu primeiro pensamento. Lembrou-se de alguém que perdera pouco tempo antes.
Também aqui não se pode dizer com segurança de quem se tratava, se de um amigo próximo, se de um familiar, se de outro qualquer alguém. Pouco importa, porque sucessivamente se foi recordando de todas estas pessoas, uma de cada vez, lembrando os seus nomes e a sua presença e dizendo-se interiormente: "quem me dera que eles pudessem ver isto". "Isto" a que ela se referia não era nada de especial, diga-se a verdade, apenas uma praia cheia de grupos de amigos e famílias das mais variadas composições, e ao fundo uma falésia excessivamente nítida contra um céu de ultramarino. Uma coisa trivial, pensou, "mas eu posso vê-la - e posso sentir a água fria". Eles, os que já perdera e lhe faziam falta, não podiam.
Este pensamento, noutra ocasião, tê-la-ia vergado. É demasiado grande a diferença entre poder experimentar uma coisa - qualquer coisa idiota e insignificante que seja - e a ideia de não poder experimentar coisa nenhuma. Está nos limites do suportável; e mais ainda saber disso de uma maneira que não é abstracta, mas colocando-lhe os nomes e rostos de pessoas que conhecemos. É um peso sem qualificações. Mas a consciência que ela tinha desse peso era um pouco como os ruídos e os movimentos ali em torno, que via e ouvia plenamente sem reagir a eles. Não estava sentindo; não estava pensando. Era qualquer coisa que não era uma coisa nem outra. A consciência da falésia estava ali apenas, a consciência que tinha das pessoas que perdera estava ali somente. E ela estava ali. Eu estou aqui, e vivo, e a consciência deles está aqui comigo, como essa areia e esta água e aquela falésia. Eles não estão aqui, e eu não estarei aqui um dia. Mas isto tudo é o que há - em abundância e diversidade talvez infinitas.
No dia seguinte deu-se uma debandada colectiva da cidade onde estavam. As pessoas saldaram as contas nos hóteis e levaram as malas para fora. Jovens estudantes em férias largaram os seus empregos temporários em restaurantes e cafés. Pais e mães puxaram os filhos para dentro dos carros e ligaram as ignições. Já na estrada, accionaram os limpa-pára-brisas por causa das primeiras chuvas do novo mês que entrava. Ao abandonar as últimas ruas, os miúdos espreitaram pela janela afora e viram gente de mochila à espera dos transportes púnlicos. Tudo estava calado, vagaroso e mole.
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